
Os livros, aos poucos, iam sumindo das prateleiras. Antes que se pudesse perceber, as fotos desapareciam. Na agenda telefônica, os nomes clareavam. Com o tempo, desapareceriam as cores da parede, o cheiro da comida no forno, a sensação de beber água. A cadeira confortável desapareceria e Lúcio seria arremessado ao chão, despencando entre lacunas de um passado que, agora, parece não mais existir. Ele já foi um homem comum, habilidoso com as letras, ativo o suficiente para que a notícia da doença chocasse a todos que o conheciam. Hoje, ele não passa de uma caricatura sem graça do homem majestoso que já foi. Carregado pela casa, cruzando os cômodos nos braços de alguém, ele nem tem noção do que se passa. Fica apenas observando, com os olhos opacos, sem expressão, o mundo ao seu redor. Pessoas de quem ainda se lembra, parentes que parecem com outros parentes. Um mundo em branco que não poderá ser reescrito.
Há muitos anos, Lúcio foi um exemplo. Era capaz de puxar pela memória os eventos mais distantes. A família o desafiava a lembrar o dia em que o primo nasceu, onde foi o casamento da irmã, o que foi servido na festa dos pais. Não havia conhecimento que não estivesse ao seu alcance. Além da boa memória, também era muito inteligente. Sabia o que tinha aprendido na escola quando garoto. Até de química, a disciplina que mais detestava, era capaz de desenhar uma cuba eletrolítica e mencionar elementos químicos e seus respectivos números. Graduou-se em Direito, por pressão da família, mas realmente gostava de ser advogado. Defendeu diversas causas, com a maestria de alguém que deveria ter sido ator. Gesticulava, fazia pausas, falava com graça. Abandonou a advocacia, somente, quando decidiu ser juiz. Nesta mesma época, escreveu alguns livros de poesias e chegou a receber prêmios por eles. Criou uma grande família. Casou-se apenas uma vez, com Marlene, com quem teve quatro filhos. Viu cada um deles crescer, deu boa educação, ensinou diversas línguas, foi o mais presente que poderia ser. Quando todos ficaram adultos, ele constatou o bom trabalho que fez. Os filhos lhe deram, até agora, três netos. Um ainda é tão pequeno, que nem aprendeu a falar. Morou com a mulher em seu pequeno apartamento por quase cinqüenta anos. Sofreu quando ela partiu, deixando-o sozinho nesta vida. Os filhos ainda tentaram animá-lo, alegando que era o melhor, que ela estava bem, que ele deveria ser forte. Lúcio superou a morte de Marlene e se reergueu. Já aposentado, voltou a trabalhar, escreveu mais livros, viajou pelo mundo, passou seu conhecimento para mais pessoas. Onde quer que fosse, Lúcio era tido como um líder, alguém pelo qual nos deixamos guiar. Foi grande entre os colegas, imenso entre os amigos, majestoso em casa. Era capaz de fazer qualquer pessoa superar os próprios obstáculos. Foi sedutor quando solteiro, fiel quando casado. Forte, destemido, adorava se aventurar, experimentar coisas novas. Mantinha contato com todas as pessoas. Era o único do edifício que cumprimentava a todos os vizinhos. As mulheres reclamavam com os maridos que queriam que eles fossem um pouco mais parecidos com Lúcio.
Deitado em uma cama que não atende às suas necessidades, ele sente a comida entrar pela sonda nasogástrica. Não há como se queixar. De tempos em tempos alguém aparece para ver o que está acontecendo. Muitas vezes ele nem percebe. Apenas fica ali, deixando-se levar pelo reflexo do sol na parede branca, tentando compreender o que é aquilo. Em posição fetal, com o corpo extremamente debilitado, esquálido, ele em pouco lembra a figura que foi. O rosto fino, de bochechas fundas, faz as pessoas pensarem no que se passa com ele. Nem mesmo os olhos – olhos de estátua, pétreos, imóveis – podem denunciar a claustrofobia de estar dentro daquela carcaça. Sem pensar, ele apenas observa o tempo passar e a morte dar mais um passo.
Lúcio nasceu pobre, estudou com sacrifício e conseguiu conquistar seu espaço. Ganhou algum dinheiro, que empregou no bem estar de quem gostava. Para a mulher, deu tudo o que podia. Ela nunca trabalhou e nunca faltou nada para seu conforto. Ele dizia, que se preciso fosse, trabalharia vinte e quatro horas por dia para que ela fosse uma pessoa feliz. A garra e a alegria do pai fizeram com que, dos quatro filhos, três decidissem seguir seus passos como advogado. Apenas a mais nova quis algo diferente. Optou pelo teatro e foi claramente apoiada pelo pai, orgulhoso da ousadia da menina.
A aposentadoria que ganha é o suficiente para atender às necessidades. Ele hoje depende da ajuda dos filhos para tudo. Quando morrer, não vai deixar nada, exceto o exemplo que tentou passar no decorrer de sua vida. Foi exemplo como filho, como marido, como pai, como pessoa. Não havia nada que ele não fizesse rindo. Se divertia com mergulho submarino ou com palavras cruzadas. Poderia dançar em um restaurante chileno ou num bingo de igreja. Jamais alguém conhecerá um homem tão feliz e tão admirado quanto Lúcio. A doença foi surgindo aos poucos. No princípio, parecia implicância. Depois, loucura. A família só descobriu o mal quando já era tarde. Todos já haviam dito coisas das quais se arrependeriam, atitudes que não poderiam ser ignoradas. Lúcio foi regredindo. Deixou de ser forte, deixou de ser Lúcio, deixou de ser gente. Chorava por qualquer motivo, repetia as palavras, deixava de falar. A casa foi ficando triste, pesada, as paredes foram ficando cinzas e agora estão brancas e em pouco tempo nem paredes serão. Lúcio não pode mais andar, não pode mais falar, não consegue engolir. A posição em que fica lhe trás feridas por todo o corpo. Não fala, não se expressa. Só respira porque é involuntário.
Em alguns anos de vida, ele foi casado com alguma mulher, teve alguns filhos, alguns netos. Trabalhou em algum lugar, gostava de algumas coisas, era alguém. Agora, as lacunas roubam tudo o que ele foi e por mais bravo que tenha sido em vida, as pessoas apenas o lembrarão como essa lacuna vegetativa que agora repousa pacífica sobre um passado glorioso. Seus olhos são fechados quando o mundo adormece e fica apenas a saudade, que aos poucos dará lugar a outra lacuna que só trará insegurança e tristeza quando seu nome for invocado.